4.8.12

«Joaquim e Judite» de Inês Dias

Dispersos pelas revistas e fanzines também se encontam olhares sobre a praia. No recente número da revista criatura, surgem três poemas com alusões directas. Dois poemas de Inês Dias e outro de Jaime Rocha. No primeiro caso trata-se claramente de uma autora que conhece e visita regularmente a praia, no segundo, é um poema que foi publicado originalmente na revista non nova sed nove, em abril de 2011 e que celebra os vinte anos daquela editora.



JOAQUIM E JUDITE
Para o Manuel,
na Nazaré

Fizera toda a viagem com ele ao colo.

Queria despedir-se junto ao mar,
mas as partidas são tão imperfeitas
demasiado enferrujada para abrir 
se o coração é uma caixa de cinzas
ao vento. Mesmo agora, depois de lavada
a última partícula que se lhe colara
à pele, sabia que o amor passara a ter
o peso exacto das ondas e, por isso,
nunca mais deixaria de o ouvir.

E ria, apontando-nos mais um turista
à procura das marcas do milagre
na pedra. Como se não fosse milagre
suficiente cada volta do mar: sermos
ainda reconhecidos, sete passos
dentro da noite, quando andamos
pelo mundo a povoá-lo de fantasmas.


A MINHA PRIMEIRA HISTÓRIA DE PORTUGAL
Para o meu pai,
que me ofereceu há muitos anos este título


Sabes bem que sempre preferi os sonhadores
e os derrotados, tal como nunca deixei de
escolher as canções mais tristes.
Saltava as páginas em que se tomavam
castelos e cobiçavam praças estranhas
para me poder sentar esquecida
à volta de uma fogueira,
vendo um irmão ser traído,
um exército desejar a morte
por uma visão. Do pinhal de Leiria
ficou-me apenas o sobressalto
do vento perdido entre as árvores,
o aroma ainda distante da canela
que, anos mais tarde, sentiria
noutro poeta. E tanto ouro do Brasil
assombrou-me as noites com pesadelos
de mármore e talha que nem a nossa armada
de papel conseguia vencer.

Hoje em dia, Sebastião é o vagabundo
mais fiel do meu jardim. Todas as tardes
adormece sobre a relva, numa real
indiferença aos pássaros que o saúdam
ou à beleza das romãzeiras que insistem em ungi-lo
de flores à falta de nevoeiro.
Gosto de reis assim, cujo túmulo
possa procurar em todas as capelas
de uma catedral estrangeira, acendendo
vela por vela até o encontrar para ti;
e sobretudo de D. Miguel com quem
me cruzei na Nazaré, quando fugia
de um milagre que não conseguia ver,
todo o mar do império cavado à minha frente.
Os meus passos não se marcaram
na rocha, nem a figura do rei-arcanjo
recuperou esses contornos apagados à força
na pedra do forte. Mas fizemos um pacto -

doravante o olhar de um sustém
o outro sobre a terra. É só essa
a nossa história.

Inês Dias


 
POEMA

Ao fundo, as nuvens chocam com as
casas. Os pássaros gritam e há homens
que se atiram das varandas como se
fossem vasos empurrados pelo vento.
Os carros esmagam os bichos que correm
pelo alcatrão. É quase Primavera, o frio
anuncia uma culpa antiga, a solidão
dos guerreiros. E há um outro homem
que diz: gosto das árvores, do seu tronco
e das raízes que rasgam as calçadas. Esse
homem decidira viver porque pertencia
à humidade das paredes, aos telhados de
barro, às bétulas. Era dali que lhe vinha
a força dos braços, a claridade que se lhe
prendera à pele. Era esta a sua confissão.
Mas, após ter dito aquelas palavras lançou-se
para o espaço, seguindo a trajectória da chuva.


No aniversário dos 20 anos da editora
non nova sed nove - Nazaré, Abril 2011


Jaime Rocha


revista criatura
nº 6, Novembro de 2011
Direcção: Ana M. P. Antunes, David Teles Pereira e Diogo Vaz Pinto