Não tendo escritos sobre a praia, tem a praia lá dentro. Na edição de Resumo a poesia em 2011, há um poema em que Inês Dias lembra D. Miguel «com quem / me cruzei na Nazaré, quando fugia / de um milagre que não conseguia ver, / todo o mar do império cavado à minha frente...» e há outros: um poema de Jaime Rocha, outro de Miguel Martins. Ambos foram publicados na revista que celebrou os 20 anos da non nova sed nove, editora da praia.
Dizem que a vida me foi dada à borla.
Só eu sei quanto isso me custa.
Dizem que não penso nos outros.
Deus sabe o tempo que gasto a pensar nisso.
Dizem que tenho um ego agigantado.
É a única coisa que tenho.
Dizem que vou acabar sozinho.
Têm razão.
Miguel Martins
A Minha Primeira História de Portugal
Para o meu pai,
que me ofereceu há muitos anos este título
Sabes bem que sempre preferi os sonhadores
e os derrotados, tal como nunca deixei de
escolher as canções mais tristes.
Saltava as páginas em que se tomavam
castelos e cobiçavam praças estranhas
para me poder sentar esquecida
à volta de uma fogueira,
vendo um irmão ser traído
um exército desejar a morte
por uma visão. Do pinhal de Leiria
ficou-me apenas o sobressalto
do vento perdido entre as árvores,
o aroma ainda distante da canela
que, anos mais tarde, sentiria
noutro poeta. E tanto ouro do Brasil
assombrou-me as noites com pesadelos
de mármore e talha que nem a nossa armada
de papel conseguia vencer.
Hoje em dia, Sebastião é o vagabundo
mais fiel do meu jardim. Todas as tardes
adormece sobre a relva, numa real
indiferença aos pássaros que o saúdam
ou à beleza das romãzeiras que insistem em ungi-lo
de flores à falta de nevoeiro.
Gosto de reis assim, cujo túmulo
possa procurar em todas as capelas
de uma catedral estrangeira, acendendo
vela por vela até o encontrar para ti;
e sobretudo de D. Miguel com quem
me cruzei na Nazaré, quando fugia
de um milagre que não conseguia ver,
todo o mar do império cavado à minha frente.
Os meus passos não se marcaram
na rocha, nem a figura do rei-arcanjo
recuperou esses contornos apagados à força
na pedra do forte. Mas fizemos um pacto –
doravante o olhar de um sustém
o outro sobre a terra. É só essa
a nossa história.
Inês Dias
Resumo - a poesia em 2011
A Minha Primeira História de Portugal
Para o meu pai,
que me ofereceu há muitos anos este título
Sabes bem que sempre preferi os sonhadores
e os derrotados, tal como nunca deixei de
escolher as canções mais tristes.
Saltava as páginas em que se tomavam
castelos e cobiçavam praças estranhas
para me poder sentar esquecida
à volta de uma fogueira,
vendo um irmão ser traído
um exército desejar a morte
por uma visão. Do pinhal de Leiria
ficou-me apenas o sobressalto
do vento perdido entre as árvores,
o aroma ainda distante da canela
que, anos mais tarde, sentiria
noutro poeta. E tanto ouro do Brasil
assombrou-me as noites com pesadelos
de mármore e talha que nem a nossa armada
de papel conseguia vencer.
Hoje em dia, Sebastião é o vagabundo
mais fiel do meu jardim. Todas as tardes
adormece sobre a relva, numa real
indiferença aos pássaros que o saúdam
ou à beleza das romãzeiras que insistem em ungi-lo
de flores à falta de nevoeiro.
Gosto de reis assim, cujo túmulo
possa procurar em todas as capelas
de uma catedral estrangeira, acendendo
vela por vela até o encontrar para ti;
e sobretudo de D. Miguel com quem
me cruzei na Nazaré, quando fugia
de um milagre que não conseguia ver,
todo o mar do império cavado à minha frente.
Os meus passos não se marcaram
na rocha, nem a figura do rei-arcanjo
recuperou esses contornos apagados à força
na pedra do forte. Mas fizemos um pacto –
doravante o olhar de um sustém
o outro sobre a terra. É só essa
a nossa história.
Inês Dias
Resumo - a poesia em 2011
Documenta, Lisboa, 2012