23.3.13

«Forte de São Miguel» de Manuel de Freitas

Pode parecer forçado dizer que a praia ainda inspira versos, mas não é. Se tivermos em conta a antologia de poesia que acaba de ser editada pela Documenta, deparamos-nos com versos escritos na praia, uma editora da praia e um escritor da praia.
A antologia reúne o melhor da poesia editada em 2012, segundo a escolha de quatro antologiadores (também editores e escritores): Armando Silva Carvalho, José Alberto Oliveira, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas. No volume Resumo - a poesia em 2012, à venda na Fnac, podemos ler o poema Anywhere out of the world de Inês Dias em que a Pederneira serve de cenário, dois poemas do livro Mulher Inclinada Com Cântaro de Jaime Rocha, autor da praia, publicados pela volta d' mar, uma editora também da praia e ainda o poema Forte de São Miguel de Manuel de Freitas num exercício de memória em que coube-nos lançar / ao mar as cinzas do meu pai. Chega? para se entender que a beleza natural daquele promontório ainda inspira?


Forte de São Miguel
in memoriam A. F.

Ainda não enlouqueci e julgo-me até
capaz de reconhecer a beleza, quando a vejo.
Esta noite, por exemplo, era de prata,
sonora, o mar que se erguia na varanda do hotel.
Acordei-te; és agora a única testemunha
deste poema - e da minha vida.
Antes, logo de manhã, coube-nos lançar
ao mar as cinzas do meu pai.
Não foi fácil, tecnicamente falando.
A tampa de metal teimava em não abrir,
tivemos de recorrer a uma ponta de corrimão
das escadas velhas do Forte. E assim,
sem preparo nem rigor, há-de chegar ao oceano
o que sobrou, fisicamente, do meu pai.
Custou-me lavar as mãos, sujas
- pela última vez - da carne que me gerou.
A alma, se existe, não a sei lavar, embora
as lulas estufadas e o vinho branco
voltassem a tornar recomendável a Casa Pires.
Adeus, pai. Acho que foi mesmo
a única vez que me sujaste as mãos.

Manuel de Freitas


Resumo - a poesia em 2012
Documenta, Lisboa, 2013