30.4.12

«A Casa das Sementes» de António Osório

Alguns poetas escreveram sobre Mário Botas. Muitos lhe admiram a obra. Mas há um poeta que o pintor retractou: António Osório. O retrato acima reproduzido faz parte do livro «O Lugar do Amor» publicado em 1985 e que mais tarde seria capa de «A Casa das Sementes» publicado em 2006, Botas ilustrou ainda a capa da segunda edição de «A Raiz Afectuosa» de 1984, criou os desenhos para «O Lugar do Amor e Décima Aurora» de 2001. O poeta disse que Botas era um «ser superior». E fez melhor: Osório mergulhou no universo do pintor e dedicou-lhe um poema.


Ele próprio acabou renunciando
discretamente ao desejo
de ser cremado: os mais íntimos
lançariam do alto mar as cinzas pelo mar.
Útil seria a peixes, a recente matéria.
De frente veria a terra da Nazaré,
as mulheres crucificadas de luto,
a praia onde algas se avizinham,
incautas, de molestos anzóis.

Arqueólogo de seu rosto,
a outras dado e recolhido
como fogo de raízes. Um olhar
de âmbar (dos felinos) sobre o alvor
e a escuridão. A abundância
do grotesco, do sinistro, água
cancerosa de lodo. Denunciar,
purificando, isso dele ficou.

Infame, até para um velho, é morrer
no dia de Natal. Outro, o seu, de Setembro.
Dói o que deixou de fazer.
O revés estava no próprio sangue,
contra o qual lutou, pestiferado,
com a ajuda de um casal de galgos persas,
como ele ascéticos e frugais no medo.
E correndo demasiado rápidos.



Antologia Poética
António Osório
Quetzal, 1994