27.2.22

Na pesca do bacalhau

Há muitos relatos sobre a dureza do trabalho na pesca do bacalhau na Terra Nova e na Gronelândia. Houve um época em que se mostrava o trabalho braçal dos pescadores portugueses nos mares da costa americana, quer em filmes, quer em relatos de reportagem. Na maioria dos casos, realidade aproveitada para o regime do Estado Novo mostrar ao mundo o quão destemidos e fortes eram os pescadores portugueses. Imagem, naturalmente,  roubada ao esforço e à precariedade laboral que então se vivia. Surge agora um relato na primeira pessoa: Guilherme Piló, nascido na Nazaré, em 1942, pescador do bacalhau desde os dezassete anos (em 1960). Descendente de homens do mar, cedo se interessou pela pesca, tendo vivido com a família em Matosinhos, Leça e Vila Chã. O livro «Homens sem coração» é um relato autobiográfico das viagens e dos perigos da pesca do bacalhau. Com palavras duras e de dedicação ao mar, Guilherme Piló, descreve a «epopeia» vestida de «surrobeco, castorina e caxemira» para que se aguentasse a viagem que duraria desde Abril até finais de Setembro. Sempre no mesmo barco. Com «algarvios, nazarenos, os da Figueira,...os da Póvoa e das Caxinas...» Gente que fechava os corações «dentro do guarda-vestidos» e que se fazia à vida, deixando mulher e filhos à espera do regresso com dinheiro para a sobrevivência. A viagem descrita neste livro foi feita a bordo do São Rafael, «navio com sessenta e dois metros de comprimento, com o castelo da proa bem levantado, com uma passarela tipo ponte para se passar da proa para a popa, dois mastros altos e um espardeque, que era onde os dóris iam encaixados...».Ao longo desta centena de páginas, o autor lembra como eram as despedidas em Lisboa, a viagem até aos Grandes Bancos da Terra Nova, a lide da pesca a bordo de um dóri, os sustos que as névoas e o mau tempo provocavam, as perigosas «ilhas de gelo» como chamavam aos icebergs, o tratamento que se dava aos mortos no mar. E é por tudo isto que a memória de Guilherme Piló atravessa com palavras, às vezes cruas e frias, um trabalho de gente que por mais tristeza e dureza visse naquele ofício, «no ano seguinte lá estavam todos a responder à chamada. Eram homens sem coração, que nome lhes podemos dar senão esse, pois se já nasciam com o mar no sangue?»

Homens sem coração
Guilherme Piló
edição Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2021



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