5.3.17

Escrever em alto mar

Há vários livros publicados sobre a pesca do bacalhau. Os mares da Gronelândia e da Terra Nova foram lugares de trabalho para centenas de pescadores da costa portuguesa, sobretudo durante as décadas de 40, 50 e 60 do século XX. Os relatos são quase ilustrativos da dureza da pesca em alto mar, da vida a bordo durante meses. De entre todos esses livros, está «Nos mares do fim do mundo» de Bernardo Santareno. Não é apenas um livro sobre a faina. Trata-se de um conjunto de textos que mostram a destreza de um médico e escritor que embarcou na frota bacalhoeira para tratar das feridas e dos males dos «pescadores mais bravos do mundo», como escreveu o repórter australiano Alan Villiers, na «Campanha do Argus». Bernardo Santareno, aliás o jovem médico António Martinho do Rosário, embarcou para depois escrever essas atrozes desventuras no mar.
A pesca do bacalhau levou dezenas de pescadores da Nazaré a fugir dos Invernos rigorosos em que não se pescava na costa e a tentar uma vida financeiramente melhor. Alguns estão neste livro. Aqueles que, de algum modo, se cruzaram com o jovem médico: o Pescadinha Ova da companha do navio Álvaro Martins Homem, Toino Fialho que caiu ao mar apanhado por um cabo da proa do arrastão António Pascoal, Matias Varina e Joaquim Ribeiro do mesmo barco, Toino Nazareno sobrevivente do naufrágio do Maria da Glória, e tantos outros, ao lado de marinheiros da Fuzeta ou da Póvoa de Varzim.
Corre sangue e maresia e gelo e neve nesta escrita de Bernardo Santareno. Consegue, apesar dos naufrágios e dos tiros dos submarinos da segunda guerra, criar com poesia e rigor dramático a vida a bordo dos arrastões por onde passou. Foram duas campanhas
A reedição de «Nos mares do fim do mundo» vem acompanhado de dois textos e várias fotografias inéditos.

Foi no «Sam Tiago», um navio-motor de pesca à linha.
O rapaz era da Nazaré. Verde, de dezoito anos. Taciturno, muito calado, vestia sempre de preto (algum luto recente?) e dava nas vistas pelo uso de um longo terço, feito com conchas do mar, que ele amarrava todas as manhãs à cinta, na hora dos «louvados», antes de arriar... Era dum trigueiro sombrio, bronzeado, enxuto de carnes e leve de movimentos, mesmo grácil. Estranha também era a maneira como tratava os outros, quando estes, irresistivelmente atraídos para ele, tentavam entabular conversa: fixava-os com os seus intensíssimos olhos verdes-lume, por momentos agitava as negras pestanas longas e duras, meneava a cabeça em jeitos de cachopo amuado e...nem uma palavra!
Cada verde costuma ficar ligado a um dos mais experientes pescadores (às vezes pai, ou tio, ou irmão), que lhe ensinará a rate da pesca e o protegerá no mar. Duas vezes e sucessivamente recomendado pelo capitão a dois da companha, de ambos o esquisito nazareno, mal arriado o bote, fugiu obstinado e acintoso. 

Nos mares do fim do mundo
Bernardo Santareno
Prefácio de Álvaro Garrido
E-Primatur, Março 2016

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